Aposentadorias

Iara Couto
4 min readApr 9, 2021

Quem sobe a Rua da Bahia desde a Praça da Estação, começa a vê-lo um pouco antes de alcançar o cruzamento com o viaduto de Santa Tereza. Ele surge altivo, moderno e comprova a juventude da cidade, abrindo a série de prédios de arquitetura em curvas que se estende pela Avenida Afonso Pena. Apesar da represália dos meus filhos, não tenho constrangimento em dizer que o prédio do Othon Palace é o símbolo máximo da divisão do centro, separando a parte bela da terrivelmente desagradável aos olhos. Acho um desperdício a forma como os engenheiros de trânsito da cidade organizaram a passagem dos carros no viaduto de Santa Tereza, obrigando os motoristas a virarem as costas para a minha vista preferida.

Eu já era jornalista formado quando anunciaram este, que seria o primeiro grande hotel de Belo Horizonte, e a cobertura da inauguração do Othon foi o meu primeiro feito jornalístico no Estado de Minas. Estive lá inúmeras vezes depois disso, sempre a trabalho. Os vinte nove andares e duzentos e noventa e seis quartos hospedaram toda sorte de gente. Recém-casados, celebridades, presidentes e gente que torrava um pouco das próprias economias para matar a curiosidade de uma noite naquele lugar. Para minha sorte, perdi a conta de quantas pessoas já entrevistei nas mesas de café da manhã, ou no meu lugar favorito, o Varandão, com vista para as árvores do Parque Municipal e a cidade que se espalhava para todos os lados. Para mim, pisar na recepção do Othon sempre quis dizer uma oportunidade de realização profissional. A possibilidade de registrar mais uma história imperdível.

Nunca me imaginei fora do jornal, assim como não pensava em Belo Horizonte sem o Othon Palace. Por isso, no dia do anúncio do fim das atividades do hotel, também comuniquei a minha decisão de aposentadoria. Se um prédio de vinte nove andares de concreto podia ter a existência repensada, eu também seria capaz.

Meus filhos ficaram felizes com a notícia. Há tempos querem que eu e Lúcia sejamos um desses casais de idosos viajantes. Têm essa mania dos jovens de achar que é preciso sair da cidade para descobrir boas histórias. Mas eu não deixo barato. Disseram que poderia escolher um hotel em qualquer lugar do Brasil para celebrar a conquista das horas livres. Seria por conta deles. Escolhi o Othon, aqui do lado mesmo. Comentei com o Toninho, fotógrafo que dividiu boas histórias comigo no Tempo, e ele topou na hora. Ainda chamou o Cláudio, o melhor repórter esportivo que o Brasil já conheceu. A gente ia fazer uma festa de arromba pra dizer adeus praquele lugar que simbolizava o auge da nossa carreira.

O quarto tinha espaço para mais gente, mas pedi para ir sozinho. Seria o rito de passagem para a vida de aposentado e tinha que ser do meu jeito. A Lúcia não gostou muito, mas respeitou. Lá dentro, senti como se tivesse ingressado numa máquina do tempo. Era um cômodo enorme, com uma antessala e uma divisória de madeira, separando a cama do restante. Os móveis me lembravam os tempos em que eu ainda vivia na casa da minha mãe. Lindos. A iluminação natural tomava conta do cômodo graças a uma janela que ia de uma parede a outra e revelava a vista que eu sempre amei. O viaduto à frente, a Av. Afonso Pena lá embaixo, o Parque Municipal e a infinidade de prédios que cercam o hotel.

Passei a tarde lendo no quarto. Os meninos e eu combinamos de encontrar só à noite, no Varandão. Bebemos como nunca. Eu e o Toninho lembramos da entrevista com a Nara Leão que acabou com todo mundo bêbado na piscina do hotel e uma matéria escrita na base de muita água para curar a ressaca. O Cláudio contou só caso cabeludo. Coisa que tem que morrer na mesa do bar pro bem da sociedade — e dos entrevistados, claro. Foi dessas noites que a gente não quer que acabe nunca. Saí de lá no dia seguinte emocionado. Sabia que seria a última vez.

Agora, que o tempo me sobra mais do que gostaria, costumo pegar o carro e passear por ali, observando o que resta de uma cidade que vivi na juventude. A falta de lugares para estacionar me proíbem de acessar minha vista favorita do prédio, a do viaduto. Quando dou a sorte de pegar o sinal da Rua da Bahia fechado, gosto de ficar olhando aquele elefantão branco no meio da cidade. Vinte nove andares que agora servem apenas à vista de quem passa. Espero que eu também encontre minha utilidade aos sentidos.

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